Para ser
Chateada, ela andava sozinha pela rua: calçada cheia de inutilidades, luz sem cor, sons mudos e nenhuma perspectiva viva. Vida em preto e branco. Mas o andar não cessava: acelerava. Virou a esquina, seguiu em frente, caiu na monotonia: os pés andavam sozinhos e sabiam onde ir e voltar.
Falava feito uma máquina. Recebia folhetos, na rua, e os jogava fora na primeira lixeira que via. Fazia calos nos pés, mas fazia pela obrigação. Machucava-se e, muitas vezes, sentia-se feliz por isso: se tinha cumprido com seu dever, a felicidade era certa. Mas isso passou a ser não apenas a vida dela, mas a de todos que conhecia.
Recebia cartas e as abria sabendo de seu conteúdo: números desgraçados que a fazia permanecer naquele círculo vicioso e palavras junto de imagens que a faziam pensar no que poderia ter e, por consequência, ser, mas não podia. Olhou, enfim, quase que aliviada: aquela carta não era igual às demais, tinha um jeito de ter sido escrita à mão. Mas ao abrir, apenas viu um papel em branco.
Nem por causa daquela carta, que apesar de estranha, ela guardou (era algo que poderia virar uma coleção), sua rotina mudara: descia subia. Naquele dia, ao menos, mudara a comida sem sal pela comida sem açúcar. Estava correndo e obrigando-se a continuar se matando em pequenos minutos dolorosos.
Mais um maço de cartas, mais uma coisa diferente: uma pequena caixa com tinta e pincel. Ela já começava a imaginar o que poderia vir na próxima leva de cartas.
Sua rotina passou a ter uma busca: o que era aquilo?
Na outra leva de cartas, uma carta, enfim, escrita:
“O que está fazendo, aí , parada? Já lhe dei tinta, pincel e papel. Comece sua obra-prima.”
Pegou suas “cartas” e fez uma bola bem no centro da folha. Mas a bola virou outra coisa, que virou outra e mais outra e fez o conjunto.
Entusiasmada, ela andava pela rua: calçada cheia de ideias, luz sem fim, sons harmônicos e muitas perspectiva viva. Vida em RGB. Mas o andar não cessava: acelerava. Virou a esquina, seguiu em frente, encontrou a liberdade: os pés andavam para onde eles não conheciam em busca de algo para ser, para montar, para ter.
Para ouvir Il Volo - O' Sole Mio.
O trabalho Para ser de Graziela Mancini foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição - Uso Não Comercial - Obras Derivadas Proibidas 3.0 Brasil.
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