DOC: uma questão de ponto de vista

   Eu realmente não sei o que as pessoas acham que vai acontecer quando a gente chega perto delas com uma câmera na mão, uma pergunta no ar e um microfone sob suas bocas. Elas simplesmente fogem: "Eu não sei", "Desculpe, mas..." e já sai correndo, "Ahhh" nem termina de responder, "Quem vai ver isso aí que vocês tão fazendo?". É sempre assim, se não pior: teve uma vez que chamaram a polícia dizendo que a gente estava tentando forçar a pessoa a responder algo absurdo. E realmente era absurdo: "O que você acha do investimento em cultura e educação no Brasil?".
   Mas hoje, eu paro para pensar e vejo que, apesar de tudo, eu também não iria responder tudo assim tão fácil, como estou fazendo agora com vocês. É difícil. Talvez não seja difícil porque a gente tenha que responder algo, porque todo dia a gente responde coisas, às vezes até mirabolantes, e nem por isso se espanta. Acho que a presença da câmera intimida qualquer um. Ela é a representação de alguém que estará assistindo a sua conversa, digamos, particular, e fazer julgamentos. A câmera é como se fosse um conjunto de pessoas que estão prontas para jogar o tomate em você, quando você fala algo que elas não gostam; mas ao mesmo tempo, essas pessoas também estão prontas para te aplaudir quando você mencionar algo fantástico. É complicado adivinhar qual será a reação da câmera: tomates ou aplausos.
  E o mais engraçado de tudo isso é que quando estamos atrás da câmera, queremos que as pessoas contem tudo, como se não tivesse nenhum equipamento na sala que se preocupe com a estética do vídeo. Quando eu estou atrás da câmera, eu me incomodo quando a pessoa não fala aquilo que eu queria que ela dissesse, me incomodo quando ela dá voltas e não responde a questão, quando ela repete a resposta mil vezes sem complementar nada, quando ela não quer responder, quando ela para e diz para você "Mas quem vai ver esse negócio?" (especialmente porque isso não é um negócio, como se fosse qualquer coisa, isso é o meu trabalho, aquilo que faço porque gosto e porque quero). Quando estou atrás da câmera, estou numa posição privilegiada de comando, de manipulação, que muitas vezes a pessoa que está sendo entrevistada não percebe. Às vezes nem eu percebo.
   Agora, quando eu estou de frente com a câmera, ela passa a ser o avaliador, o professor que se diverte entrando na sala dando a corda (prova) aos alunos e assistindo eles atarem o nó na garganta, esperando por sua sentença. A câmera, apesar de tudo, não é apenas um objeto cheia de fios e metal: ela é um ser complexo e imprevisível. Essa coisa da nossa relação com a câmera é bem psicológica e fantasiosa, vinda de um costume da sociedade antiga de ter medo do "monstro" que grava seus movimentos. Mas tudo é muito relativo, porque às vezes os papeis se invertem: quem está na frente da câmera passa a comandar e se sentir à vontade, enquanto que quem está atrás da câmera pode estar morrendo de medo.
   Acho que o que vou contar agora se encaixa perfeitamente bem com o que estou dizendo.
   Uma vez, quando estava no colegial, meu professor de matemática chegou na sala e perguntou "O que é SENO?". Todo mundo ficou quieto. Então ele perguntou o que era ângulo, e logo se adiantou a responder: é o ponto de vista. Simples assim: é o ponto de vista, que se forma quando você está olhando para algo. Então ele comentou de algumas coisas de circunferência, conversou conosco e voltou à questão "O que é SENO?". Se quem tinha respondido que era o cateto oposto dividido pela hipotenusa achou que estava certo, acabou se decepcionando, porque a resposta também era simples: é o ponto vertical (ou seja, que está de pé) mais distante do seu ponto de vista. Assim, eu poderia dizer que a câmera é o seno, mas o ângulo, pode ser qualquer um de nós, ou até mesmo todos nós.
   É tudo uma questão de ponto de vista, de ângulos e simetrias. Talvez até mesmo aquilo que é assimétrico e inanimado tenha um ponto de vista com todos os seus medos e felicidades.
   Mas o que realmente considero como sendo a minha felicidade, nesta área, é poder pensar que, mesmo depois de tanto trabalho, pegando aqueles documentos e arquivos e editando, para criar um sentido e uma reação nas pessoas, aquilo acaba surtindo efeitos diferentes para cada pessoa, tonando aquele momento e aquele material, em coisas únicas. Acho que isso pode ser considerado como o melhor de tudo. Talvez não de tudo, mas do fato de termos uma câmera no meio de todas essas questões, porque afinal, a câmera muda tudo, mesmo que tudo seja igual, aquilo que foi gravado sempre será diferente do real.



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O trabalho DOC: uma questão de ponto de vista de Graziela Mancini foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição - Uso Não Comercial - Obras Derivadas Proibidas 3.0 Brasil.
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