A história da gente
Minha mãe estava, esses dias, me contando um pouco sobre a minha infância. Incrível como criança gosta de fazer perguntas: era olhar, ouvir ou pensar e algo e lá vinha uma pergunta. É como se criança tivesse um acervo completo de perguntas. Umas bobas e óbvias. Outras, inteligentes e complicadas, que fazem com que o adulto, que se chama de sábio, numa saia mais do que justa, ficando a pergunta para lá e distraindo a criança com qualquer outra besteira. E tem aquelas perguntas que fazem com aqueles mesmos adultos fiquem numa situação nada agradável. Enfim, as crianças conseguem fazer perguntas de todos os tipos, formas, jeitos e efeitos.
Eis que, um dia, eu estava toda criança, toda faceira, e cheguei na minha mãe:
_ Quando que começa a história da gente?
Minha mãe olhou surpresa por uma pergunta tão engraçada quanto aquela e respondeu com prontidão:
_ Oras, quando você está na barriga da mamãe, quando ainda nem nasceu ou viu o sol, sua história começa
E eu, com aquela cara de quem não entendeu bulhufas, fiquei meio quieta. Minha mãe, com medo de vir uma pergunta ainda mais cabeluda, já se adiantou a explicar melhor:
_ É assim: quando você ainda está sendo formada na barriga da mamãe, quando você ainda não tinha dedinhos, cabelo ou pé, sua história começa. Porque quando a nossa história realmente começa, é quando não somos ainda pessoas formadas, e muitas vezes, nem estamos na barriga da nossa mãe: somos apenas um plano, um sentimento. Entende?
E como toda criança é bem sincera, eu já falei, na lata, um certeiro não.
_ É…. quando nós, adultos, já encontramos o amor da nossa vida e nos casamos, é natural que já se comece a pensar em ter filhos. Isto se chama planejamento. E é quando se inicia esse planejamento que a nossa história surge. Mas por que você quer tanto saber?
E eu, pequena criatura que era, olhei para a minha mãe e respondi:
_ Porque toda história tem alguém que fica contando o que está acontecendo. Como naquele filme de ontem.
Minha mãe riu com gosto…
_ Mas isso só acontece nos filmes, porque na vida real não tem narrador, e quem escreve nossa história somos nós.
Mas não me dei por satisfeita e lá fui fazer outra pergunta:
_ Mas a vovó disse que só o destino sabe o que vai acontecer com a gente. Então quer dizer que é ele quem escreve a nossa história?
_ Não exatamente filha. O destino é uma força que faz com que as coisas aconteçam de um jeito X. É como se fosse o narrador dos filmes, que até sabe o que vai acontecer conosco, mas só que o destino não fica falando. Entendeu?
Minha mãe não queria ouvir a resposta, mas perguntou, e eu respondi:
_ Sim, mas então porque a gente escreve? Se ele já está escrevendo, é só a gente ler.
_ Não filha, não é que ele escreve a nossa história, ele na verdade faz com que as coisas aconteçam. Quando a gente diz escrever, a gente quer dizer que ele decide certas coisas que acontecem conosco.
_ E quem foi que deixou ele decidir? E se eu quiser fazer alguma coisa?
Minha mãe respirou fundo, vendo que aquilo ia longe. Então, ela teve a brilhante ideia de me distrair dizendo:
_ Vamos fazer uma pausa, porque aquele seu desenho animado, o que você gosta, já está começando.
Eu fiquei meio insatisfeita e fui ver o tal desenho.
Minha mãe estava feliz, na cozinha, lendo a revistinha dela, enquanto o bolo assava. Mas, criança crescidinha não é boba, e eu que não iria querer ficar sem resposta.
_ Mãe, você ainda não me respondeu…
Aquela mulher que estava calma na sua leitura diária da vida alheia, passou a ficar preocupada com a possibilidade de voltar ao assunto cabeludo que estava se formando:
_ O que filha?
_ Ué mãe, quem foi que deixou o destino decidir minha história?
_ Ah! Mas porque você quer saber tanto sobre isso?
_ Porque quero, oras.
E a mãe tomou um gole d’água, porque sabia que quando a resposta era assim não teria como convencer do contrário, e foi falando:
_ O destino só decide algumas coisas, o restante é a gente que escolhe. Digamos que ele é o nosso guia, dando algumas opções de caminhos. A gente só tem que escolher.
_ E quem é o destino?
_ É uma força invisível. Tem gente que chama de destino, tem gente que chama de Deus
E aquela boquinha nervosa resolveu abrir novamente:
_ Mas mãe, se a nossa história não tem narrador, como a gente vai saber o que vai acontecer?_ A gente não fica: vai vivendo e descobrindo. E é aí que está a graça, porque se tivesse um narrador, a gente não poderia saborear a dúvida, o medo, a incerteza, o coração pulando e toda aquela coisa de sentimentos para cá e para lá._ Mas isso não é perigoso?_ Mas é claro que….Humm… Bom, até é, mas isso depende muito da situação. De modo geral não é não. Basta você aprender a viver._ E como se aprende?_ Ué, vivendo! Só se aprende na prática, com a convivência, com os altos e baixos, com tudo. É por isso que não se consegue aprender tudo na escola, mas o que se aprende é importante e necessário._ Mas já que a nossa história não tem narrador, como será que ela iria começar, se ela fosse escrita de verdade?_ Com certeza a sua vida iria começar com o famoso “Era uma vez..”, e seguiria contando que você é uma princesa linda e educada, estudiosa e brilhante!
Eu abri aquele sorriso bonito: uma princesa! Então, a pergunta começou a se formar e eu falei:
_ Mas, se a gente sabe como começa, então deve saber como termina, né?_ Não, filha, ninguém sabe como sua história vai terminar._ Então como a sua vai terminar?_ Filha, a gente só sabe sobre aquilo que já passou. Eu não sei nem o que vai acontecer amanhã, ou em um ano, quem dirá o fim de tudo._ Mas eu sei.
A mãe ficou parada, impressionada com o que acabara de ouvir.
_ E o que vai acontecer?_ Você e o papai vão se separar.
Minha mãe ficou quieta. O assunto acabou por ali, com um bolo de chocolate sobre a mesa e, em seguida, um passeio de bicicleta.
Realmente, depois de alguns anos, eles se separaram, sem muita surpresa. Mas o que mais surpreendeu minha mãe naquele dia foi saber que até mesmo eu já havia percebido o que estava acontecendo, e falei com naturalidade. Durante a minha infância, muitas outras perguntas foram feitas, mas nenhuma delas mudou a vida da minha mãe quanto aquela que eu fizera sobre a minha história. Aquela pergunta fez com que ela percebesse que a história dela estava sendo escrita do jeito que alguém queria, não do jeito que ela queria. Ela estava gastando um tempo que não voltaria, com alguém que não iria ajudar a fazer aquele relacionamento evoluir, e o tempo é precioso demais para se gastar de um jeito tão bobo.
É uma pena que, à medida que se cresce, paramos de fazer perguntas, porque elas poderiam ajudar a descobrir aquilo que o destino nos reserva.
O trabalho A história da gente de Graziela Mancini foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição - NãoComercial - SemDerivados 3.0 Brasil.
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