Um composto complexo
É engraçado como o ser humano é realmente universal. E não é apenas biologicamente falando, mas também sentimentalmente. Chega a ser estranho alguém dizer que se sente sozinho: as situações mudam, mas o sentimento acaba por ser o mesmo para todos.
Estava, esses dias, fazendo um exercício sobre o nosso Id (tínhamos que descobrir qual era o nosso Id e apresentá-lo, tanto que publiquei aqui o meu trabalho). Cada um fez de um jeito: teve gente que, assim como, fez um texto ou um vídeo e apresentou; e teve gente que se sentou no meio da sala e começou a falar, com espontaneidade e do fundo do coração tudo o que era o Id dela. E aquelas apresentações emocionavam. Podia não ser a mesma situação que eu vivo, podia não ter nada a ver comigo, mas a gente entrava na história e se sentia dentro daquele monte de palavras, cujos significados variavam de pessoa para pessoa. E eu poderia até estar normal, mas assim que nós víamos alguém chorando, lá vinha a lágrima escorrendo pelo nosso rosto quase que involuntariamente, para que ninguém se sentisse sozinho.
E mais engraçado ainda: aquelas lágrimas tinham significados diferentes para cada pessoa que as tinham rolando pelo rosto. E, então, as lágrimas deixaram de ser apenas um líquido composto por água, sais minerais, proteínas e gordura. Elas já não eram apenas um produto da glândula lacrimal, composta por glândulas lacrimais localizadas atrás e ao lado do olho, que por sua vez é o órgão da visão que, milagrosamente, transformava a luz que refletia nos objetos e seres em impulsos elétricos, que se tornavam em mais um motivo para emocionar quem passasse por ali. E aquelas imagens traziam ainda mais lágrimas (porque, talvez, se apenas nos dissessem aqueles textos, sem as imagens, haveria apenas uma emoção superficial). E aquelas lágrimas que, anteriormente, serviam apenas para lubrificar o globo ocular, passaram a servir para expressar a intensidade de tantos sentimentos que não cabiam mais dentro de nós. Para muitos, aquelas gotas lavavam a alma carregada, para outros tantos, traziam mais uma lembrança que ficaria marcada de um jeito diferentíssimo do que se estava acostumado a ser, a ter, ver.
E aquele que, no centro, abria o coração, sangrava de tal modo que talvez nem fosse possível enxergar com tamanha veracidade. O sangue, que era transparente aos olhos, quente ao tato, ardido e com seu cheiro característico ao olfato e ao paladar, agora era transferido para os que estivessem numa situação parecida, e respingava em quem era possível alcançar.
Enfim, só se poderia concluir uma coisa: as lágrimas não são algo tão simples quanto nos é ensinado ou quanto os livros nos dizem. As lágrimas não são, então, apenas um processo cotidiano e automático: elas carregam o exato sentimento que se tinha no momento em que aquela gota se formou e também carrega o fato que desencadeou aquela defesa que o corpo já carrega, instalado em si, contra a confusão que se forma.
E então, aqueles sentimentos processados pelo sistema límbico, aquele sentimento causado por algum estímulo, se esvaia aos poucos da sala. Fomos, então, retomando o controle de nossos próprios corpos e, aquela sensação gostosa do fim da chuva, do término da angústia, do início de um novo momento, mais tranquilo do que fora a tempestade, nos preparava para a fase seguinte do dia.
E se tivéssemos pego as lágrimas de cada um, e assistido às lembranças e a relação de causa e efeito que levara cada um a derramar gotas do composto de água, sais minerais, proteínas e gordura, veríamos, com surpresa, como simples gestos faziam toda a diferença, fazia todo o sentido.Veríamos, também, o sentimento de cada um.
Mas, ainda bem que ainda não há como ver todas essas coisas das nossas lágrimas, porque assim, ainda temos a tranquilidade de nos expressar deste modo tão íntimo de cada um característico de todos que, talvez, até mesmo um Homo Neandertalenses o fizesse. E que bom que nos expressamos deste modo: ele é universal e nos faz sentir menos solitários, mais próximos e acolhidos pelos da mesma espécie que nós.
Para ouvir Überlin – REM.
O trabalho Um composto complexo de Graziela Mancini foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição - NãoComercial - SemDerivados 3.0 Brasil.
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