Drops de textos
Encontrei ontem, num dos meus cadernos, vários pequenos textos que eu tinha escrito ano passado. Gosto de vários deles e acho que eles merecem ter voz por aqui, mesmo que não estejam perfeitos.
1
Belíssima és tu. Ainda inexperiente, mas sabida de si. Graciosamente vai pressionado a altitude, rindo da temperatura e acompanhando a latitude. E mesmo que quase nada soubesse, queria fazer verão. Ia para o norte quando, subitamente, viu uma janela abrindo-se para ela. Mudou seu rumo para o leste e lá pousou.
Cantou a tarde toda até que, na fresca sombra, surgiu-lhe aquela figura que parecia lhe querer tão bem. Deu-lhe água, fazia-lhe carinho, dava-lhe a janela.
E cantava o dia todo, achando fazer verão. Recebia sempre o mesmo tanto de dose viciada de tempo daquela figura, todo dia, não importando seu empenho. Passou a empenhar-se menos, ver a real miniatura do quadrado ao seu talento, a água com terra às suas penas e o carinho dividido.
O tempo passou a ficar cada vez mais fresco, até esfriar-se de vez: não estava fazendo verão? Talvez. Resolveu entrar na sala e viu a goteira, o tecido rasgado, a parede desbotada. Lá jasmim não brotava: sabiá já cantava.
Então, bela, vá procurar por outros trópicos e encontrar novas companhias. Você, andorinha, pode não fazer verão sozinha, mas com certeza consegue a melhor primavera de todos os tempos.
2
Brilha no escuro, ascende no obscuro, omite-se no claro. Eis que sua capa te abriga e seus calçados te levam. Vá: volte quando estiver livre.
Faça da sua madrugada o samba que quiser, mas não me venha pedindo garoa: eu apenas pisco. Surjo do nada e vou-me sem que se espere, sem que se perceba. Fui.
3
Mas que vermelho é este? Cólera? Colírio? Neblina?
Cegou-se. Abra os olhos novamente, mas apenas eles. Veja os carneiros que voam, os queijos que adoçam, os lírios que morrem. Veja, antes que tudo saia do prumo.
Pena leve voa, e tempo fresco aquece.
4
A boca dizia e sangrava. Sangrava outras bocas que diziam e sangravam. Sangravam e diziam as bocas de quem já ia. Já ia quem as bocas diziam e sangravam. Sangravam. Como se fossem familiares, balas cruzavam bocas e bocas cruzavam balas que eram proferidas por bocas alheias. Morriam centenas de milhares e nasciam de lírios mortos os mortos que renasciam. Renasciam para sangrar novamente, até amanhecer o luar.
5
Aquele som com ar de verão. Aquele som com jeito de tempos antigos nestes minutos. Aquele som com cara de brisa doce. Som com gosto de novidade. Som de todos os estilos, todas as idades. Som de feriado nacional. De sorveteiro de algodão doce. De chuva fresca e cheiro de mato. De árvores macias e brejos enssapados. Pessoas que transitam cruzando faixas, virando ruas. Luzes apagando para o rei que está acordando. Risos de água de coco e samba malandro. Patipapatiparapapum. E acaba numa onda desmanchando na areia. Recomeça. Aquele som que tem cheiro, ginga e pinta de verão.
6
Feito letreiro de tamanhos gigantes, feito telas de qualidade estonteante, feito capítulos andantes, as palavras deslizam da minha massa cinzenta. E não param. Não param. Não. Mesmo que eu mude a unidade, informações continuam a cruzar minhas curvas. E são tantas! Mas tudo proporcional: infinito.
Se você olhar para mim, o que é engraçado, não vai achar estas informações, a menos que as pronuncie. E cada palavra que poderia dizer vai passando. Vai passando de novo, e de novo. Novamente. Mente. Dizer isso ou aquilo não convém e substituir palavras deixa tudo mais bonito. Engraçado, divertido. Você, com certeza, não sabe o que divulgo na minha caixa, porque se soubesse, as jujubas seriam salgadas.
Ainda estão doces. Cristal.
7
Olha só quem passa. Desfila na passarela. Passa ela na lista zebrada. E mais um passinho para o olhar charmoso. Buzinas alucinadas e a galera delira. O rapaz, que vem em seguida, não ousa nada, para a nossa alegria. Calça jeans e camiseta grudada: mamãe que arrumou. Lá vem o casal de velhinhos que dão, literalmente, um baile pra moçada ao som de Luan Santana. Universitário? Não, longe disso. E a estrela da noite é: o perdido. Que passa sozinho, olhando pro nada e põe fim à festa do pessoal. Agora, a próxima temporada será só no vermelho.
8
Mais um grito, mais um passo, mais um ato de desespero. Inútil. São obrigados, pela segurança deles e interesse do Estado, a ficarem afastados de sua casa, assistindo ao genocídio.
O irmão que pulou para os braços do rio, o rio de folhas que caíam mortas, as flores que se entregavam ao cinza, o cinza dos troncos e os corpos queimados, as almas queimadas pelo sorriso daquele que cegou-se de terras, as terras que morriam a vida que tanto dera, sem nada receber e por nada morrer. Nada sobreviverá. Sobreviverá o sorriso do que cegou-se. Cegou-se por vontade própria. Própria ferida aberta da espécie fechada. Fechada cabeça de vento. Vento enfumaçado pela poeira. Poeira de esperança que esvaia-se.
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