Piando o piano
De manhãzinha, bem cedo, ela levanta-se antes do marido para fazer o café. Mal comia, dizia que nunca sentia fome, e podia até ser verdade, mas era uma verdade treinada. Tinha começado a comer doses passarinhadas anos atrás, para chamar a atenção do marido. Só a vizinha reparou.
Ele comia e saía. Ia trabalhar de porteiro na faculdade, como sempre. Era trabalho dele há 25 anos. Era um aventureiro: cada dia uma surpresa. Rinha vivido situações dignas de um livro de ficção fantástica. Nunca contava nada a esposa porque sabia que ela não iria acreditar nem se tivesse provas.
Ela passava o dia inteiro sentada no sofá. Quando era mais nova, trabalhava. Costurava qualquer coisa que lhe pedissem. Fazia vestidos belíssimos para as velhas senhoras que deliravam com seu trabalho, porque ninguém fazia algo tão belo e de tão boa qualidade como ela as fazia. Também costurava calças de alfaiataria: só ela fazia um bolso tão grande e com um caimento tão certinho. Até o padeiro fazia as calças com ela. Às vezes, consertava peças de grife. Sempre ouvia tudo quanto era tipo de história e aconselhava tão bem que até o psicólogo do bairro consultava-se com ela. E o marido consultava-se com o psicólogo, claro! Afinal, como poderia saber que tinha uma conselheira praticamente graduada dentro de casa?
Na hora do almoço, ele chegava em casa perguntando como ela estava, o que tinha feito - O mesmo de sempre. Fulano mandou-lhe lembranças -. Ela perguntava as novidade - Igual ontem: alunos são rebeldes demais. No meu tempo... humm -. O silêncio era sempre mais confortável, menos constrangedor.
Certa vez, ela passou a dizer aos seus clientes que pararia de costurar, que eles não voltassem mais: sua neta estava para nascer e ela cuidaria da criança. O último cliente, como todos os outros, lamentou pela última vez a decisão que ela tomara num último dia de uma semana qualquer. A primeira neta nasceu e pela primeira vez teve tão grande decepção: sua nora decidiu contratar uma babá. Pouco falavam-se e a menina pouco importava-se.
Ele amava a faculdade de tal modo que decidiu permanecer lá, mesmo sabendo que estavam falindo. Achava que era apenas uma maré ruim, que dariam a volta por cima. O prédio foi vendido para pagar as dívidas. A faculdade virou depósito de administradores. Tremendamente arrasado, passou a ter a ideia fixa de que venderia sua casa para ir morar na praia, o lugar que mais gosta no mundo.
Toda vez que ela ouvia ou pensava no lugar onde possivelmente iriam morar, enlouquecia. Tinha medo de vender aquele que tinha sido seu esconderijo por tanto tempo. Assim, todo dia a comida que servia ia piorando, afinal, ela já não gostava de cozinhar e ainda tinha que preocupar-se com a futura casa onde teria que morar, a coisa desandava de vez. Concluiu que precisa relaxar, distrair-se e decidiu que queria um piano. Não sabia nem posicionar os dedos sobre as teclas, mas amava música. Conseguiu tirar 3 músicas em pouco tempo de treino.
Ele amava uma boa comida, mas não tinha paciência para aprender a cozinhar e muito menos para esperar que sua esposa aprendesse a lidar com o fogão. O restaurante perto da antiga faculdade virou seu Jardim do Éden. Entediado como passava todos os dias, acabou por querer trabalhar no restaurante: era gerente! Estava feliz demais para ir para a praia: vendeu a casa e comprou um apartamento no quarteirão ao lado do restaurante.
Apesar de todos os pesares, ela decidiu que não iria querer morar num apartamentuzinho. Numa suprema felicidade, desligou-se de tudo e resolveu morar dentro de seu piano. Ainda hoje toca solos divinos.
Comentários