Selvagem vida urbana

   O que tenho para contar confunde-se entre um conto urbano e histórias de contos de fada (note que isso se dá pelo personagem em questão, não pelo formato de exacerbado amor e final feliz, sem exceção), mistura-se entre o cômico e a tragédia e encaixa-se, por correlação, com tantas situações na vida que quase eu mesma me perdi na forma como contaria este episódio. Por fim, optarei pelo relato e pronto. E, aliás, prepare-se, caro leitor, com um copo d'água de um lado e uma caixa de lenços do outro porque, afinal, prevenção é tudo na vida, já que estou para lhe relatar um caso inédito. De tão inédito, pode ser que você duvide de minhas palavras. Mas não importa, na verdade, porque o real valor disso é que, como dizia Roberto Carlos, emoções eu vivi!
   Sem mais delongas, peguem suas cadeiras e sentem-se: lá vem história!

   Eu moro com os meus pais na mesma casa desde que me entendo por gente. Ela fica situada na neutra fronteira entre o caos urbano de uma metrópole e a tranquilidade de uma cidade interiorana ainda ocupada pela natureza e sua diversidade tanto na fauna quanto na flora. Isso fez com que nossa casa virasse um ponto de encontro entre alguns bichos que procuram por asilo em meio a expatriação que acabam sofrendo. O problema é que eu mesma sofria muito com a aparição desses figurões: você faz ideia de como é lidar com um saruê nervoso? Cosmopolita como sempre fui, me desesperava ao me deparar com uma barata, morria de nojo quando tinha que arranjar um jeito de desviar de uma lesma e sempre me assustava quando uma lagartixa se desengonçava a andar pela parede. Como lidar com esses bichanos que vêm invadir meu lar e atrapalhar minha paz?
   A forma de defesa que encontramos é o veneno, é claro: tenho um asco imenso por esses bichos, ao mesmo tempo que tenho dó de matá-los com minhas próprias mãos. Mas mesmo com esta artimanha para defender minha propriedade dos invasores inevitáveis, eles inevitavelmente trombam comigo em casa: coincidência, não? E a coisa mais engraçada é que esses encontros sempre acontecem à noite, quando chego do trabalho e aproveito para comer enquanto vejo TV, durante o quinto ou sexto sono de meus pais. E é justamente nesse período que dá a louca nos refugiados bichanos e rola cada coisa que minha nossa! Já teve marimbondo com insônia se debatendo contra a lâmpada, abelha que se passasse por uma blitz tava ferrada, morcegos que ultrapassam os limites de velocidade e por pouco não se chocam em você, baratas que fazem acrobacias e paraquedismos: uma loucura!
   As noites mais sombrias foram aquelas em que eu assistia Game of Thrones: teve uma semana em que eu virei uma assassina de baratas (matava de uma forma calculista, à sangue frio), e teve outra em que deu início a novela que nomeio de Ratatouille.



   A primeira prova cabal de que já não estávamos mais só foi a banana mordida na fruteira. Minha mãe não titubeou: certeza de que foi um saruê! Eles ficam zamberetando pelo telhado, comendo as seriguelas que caem do pé do vizinho e às vezes acabam indo parar até na garagem. Inclusive, vi um no outro dia, depois de descer do carro: de longe até parecia um gato... E outra: olha o tamanho dessa mordida!
   É claro que o malandrinho sabe que banana não é a única coisa boa que tem nesse mundo: pães, bolos e outras frutas foram atacadas. Eram vestígios de um crime diferente por dia: a impunidade já não era mais uma alternativa. Meu pai comprou veneno pra rato, supondo que isso resolveria nosso problema com o saruê. Abastecemos alguns potes de plástico e o colocamos em pontos estratégicos: agora nossos problemas acabarão de vez e dormiremos em paz, enfim.
   Mas é claro que os meliantes não se prestaram o serviço de facilitar nossa vida: toda noite era a possibilidade de uma noite de terror para mim: meus pais dormindo e eu comendo atenta a cada reviravolta que rolava no Game of Thrones e a cada barulho que o bendito bichano fazia. No princípio era apenas um, correndo de um lado ao outro no "forro" (não estou certa de que este é o nome correto para aquele pedaço arquitetônico de teto entre a telha e o vazio, separado por uma longa extensão fechada de madeira) sobre a sala de TV. Mas aí Deus tinha que se meter no meio e dizer multiplicai-vos. Logo a família já tinha uns 10 componentes, suponho. E faziam a festa todos os dias: pulavam, gritavam, corriam, produziam uns grunhidos meio estranhos.
   Depois de um tempo de convivência com eles, de forma indireta, é claro, podia jurar que já entendia os dramas familiares pertinentes a eles: quando um roubava a comida do outro, quando estavam se preparando para dormir ou brincavam de se morder. O foda é que toda vez que relatava a existência de tal família na nossa casa para os meus pais eu me passava por neurótica, paranoica, alucinada: a vida familiar deles era noturna, ou seja, durante o dia eles só não existiam em canto algum da casa. A única comprovação de que eles continuavam ali eram os venenos comidos, até o momento em que eles, astutamente, descobriram que aquilo era veneno.
   Acredito, inclusive, ter participado, indiretamente, do congresso da comunidade local que definiu aquele produto como morte, antes considerado como ração. A revolta deles perante a crueldade humana foi tamanha que cheguei a sentir na pele os gritos raivosos, suas corridas e pulos. Subentendo que o drama iniciou-se com a morte prematura de um deles, dada a minha familiaridade com o dialeto deles. Temi pela minha segurança e a dos meus pais: os planos deles, em virtude do crescente ódio que o luto lhes trouxe, eram horripilantes. Mas, por sorte, eles são organizados o suficiente para terem um sistema de prioridades estruturado de forma racional: primeiro a comida, depois a vingança. E já que os humanos não queriam fornecer uma ração especificamente destinada a eles, eles comeriam a ração dos humanos.



   A guerra passou a ser cada vez mais difícil de vencer: criamos novos esconderijos para as frutas (a mais difícil de todas era a bacana: seu cheiro forte sempre delatava onde se escondiam as frutas atraindo o inimigo a banquetear toda sorte de variedade que tivesse. Além disso, nós mesmos estrávamos em grandes debates quanto ao armazenamento da dita cuja: eu não concordo em comer banana gelada e meus pais não ligavam. Seu destino acabou sendo um pote com tampa), pães (eles nem ligavam se estavam comendo com pedaços de papel ou plástico, com tanto que seus estômagos estivessem preenchidos), e bolos e balas e bolachas e biscoitos e etc. Não adiantava, também, achar que guardar a comida dentro do forno era uma boa estratégia: logo descobrimos que aquele era o QG noturno dos caçadores da família. Quantas vezes eu não me munia de coragem e abria o forno pra ver se um dos sem vergonha não dava as caras e abria o bico sobre todo o clã e seus planos. Algumas vezes até tinha que chamar meu pai, mas ele nunca pegava o filho da mãe no flagra.
   Teve uma vez em que provavelmente o desespero estivesse batendo em seus estômagos e a ousadia acabou por ser extrema: visualizei um dos roedores a buscar comida na fruteira (a esta altura composta por batatas e cebolas, apenas) e não hesitei em gritar por reforços: minha mãe surgiu com um rodo para mim e um arado para ela, meu pai surgiu com a cara e a coragem já matutando um plano para encontrar o espertinho do roedor e expulsá-lo de casa. O episódio inteiro só serviu para parecer que estávamos num protesto pela reforma agrária e para  já deixarmos nossas armas encostadas dentro de casa para agilizar nossa ação em caso de combate corpo a corpo.
   Em outra ocasião, desta vez à luz do luar, estava vendo TV e vigiando a cozinha: o danado do roedor estava tramando saquear as batatas, foi o que traduzi de seu dialeto sussurrado. O barulho no forno era tamanho que tive que chamar meu pai que, junto a mim, buscou vestígios de sua presença no perímetro ao redor do fogão e no próprio, é claro. Nada, como de costume. Ele voltou a dormir e eu a ver TV. Nessas ocasiões eu sempre ficava numa tensão tão grande e tão desperta que não conseguia nem pensar em dormir, como consequência do stress advindo do medo, quanto mais cochilar frente à TV. Pois naquela noite eu cochilei e nem vi. Quando despertei e olhei pra TV o roedor estava lá, me encarando. Fiquei observando-o com certa curiosidade: sua respiração acelerada, seus bigodes se mexendo em movimentos minúsculos e frenéticos, seu diminuto corpo recoberto por pelos curtos e de um marrom acinzentado, seu ser limpo e, a distância, inodor que exalava um medo tão curioso quanto o meu. Cheguei a criar certo afeto por ele. Cheguei, inclusive, a achá-lo fofo. Como podia, o saqueador inimigo e nojento e abusado ser fofo? Vacilei em saber o que fazer e a falta de referências sobre a capacidade e habilidades do bichano me fez chamar meu pai uma segunda vez naquela noite. É claro que o roedor fugiu e se escondeu numa velocidade indescritível e meu pai, como de costume, não achou nada. Eu dividi com ele aquele misto de ternura com medo e com tendências assassinas que sentia, naquele momento, por aquilo que passamos a saber ser um rato. Tão belo quanto asqueroso. Estava atônita e ainda agitada pela adrenalina de ter acordado repentinamente e por ter sido encarada pelo dito cujo. Resolvi desistir da TV e ir pra cama, mesmo sem sono aparente.



   Um tempo se passou e a gangue de ratos sumiu, desapareceu, fugiu, não mais existia.
   Como a prevenção é a principal estratégia de defesa de qualquer batalha, mantivemos os potes com veneno para rato espalhados pela casa. Tempos de estranha paz se sucederam por semana: até abrimos mão dos esconderijos e táticas de armazenamento bélicos dos alimentos! Mas o veneno permaneceu, porque afinal, melhor é esperar mais um pouco para termos certeza de que eles tinham realmente sumido, e não somente silenciado.
   E não é que a sabedoria dos meus pais em esperara estava certa? Há aproximadamente 3 semanas as tímidas atividades de dois ou três componentes daquela já conhecida família de roedores voltou a sondar o "forro" sobre a sala. E a incógnita sobre como exterminar ratos, em casa, voltou à tona. Resolvemos aguardar de novo e observar se teríamos a casa invadida outra vez.
   No início da semana passada eles sumiram de novo: não chegaram nem a tentar sondar a cozinha! Estariam buscando reforços? Estariam se preparando pra um batalha sanguinária em busca de comida?
   Nada aconteceu, até ontem. Em plena noite de folga, estava eu cansada, mas sem sono. E o que a esperteza resolve fazer pra se distrai? Ver TV, é claro! O som notúrnico do sono dos meus pais, como sempre, preenchiam o vazio que a TV não alcançava. Minha mãe nem se mexia, meu pai um suspiro pesado de sono pesado. A gravação da novela rolando e a fome da madrugada me atiçando a ir pra cozinha: peguei um pedaço do bolo que eu já havia cortado e gulosamente cortei outro. Enquanto guardava o bolo sobre a geladeira, comecei a ouvir um debater de água vinda do banheiro. Achei estranho, apurei o ouvido e notei uns suspiros e desabafos da minha mãe. Logo pensei: que ninja ela, nem a vi descer as escadas. E pelo jeito deve estar passando mal... Será que está vomitando? Terminei de arrumar as coisas  na cozinha, ascendi a luz da escada e, relutante, fui até o banheiro. Quando percebi que não tinha ninguém no banheiro gelei de medo: mas o que é que tá fazendo esse barulho constante de água? Ao ascender a luz o banheiro não pude conter um grito de susto e outro pedindo por socorro pro meu pai: o rato estava, pasmem, dentro da privada!



   Como isso foi acontecer? Acho que nunca saberemos. Meu pai, enfim, comprovou para si e para o mundo a existência real do tal rato. Mas ao mesmo tempo que era bom o fato de o dito cujo estar imerso na privada, também era um motivo de complicação: como iríamos tirá-lo de lá? Aí é que são elas. Meu pai surgiu com a ideia de usar álcool. Mas como? Ah pai, joga na água da privada e bota fogo, sugeri mesmo que fosse só pela zueira. Ele desceu pro atelier pra apurar a tática e eu subi pro meu quarto pra pegar o tubo de Mortein que guardava no banheiro. Quando desci, ele chegou com um borrifador lotado de álcool e eu orgulhosamente lhe mostrei uma segunda alternativa. Mas ao chegar no banheiro, pasmem, o rato tinha sumido. Nenhum rastro d'água no chão: ele não tinha pulado pra fora da privada. A única forma de escapar dali seria ir cano abaixo: ele teria ido parar na fossa? Só por precaução vistoriamos a casa por cima e o banheiro de forma detalhada: até descarga demos e nada do tal rato.
   Meu pai foi voltar a dormir e eu, pilhada, voltei a ver TV. Estava tão acordada, tão despertada, até dormir sem nem perceber.
   Acordei de supetão, de novo com o bendito barulho incessante de água mexendo vindo do banheiro. Levantei correndo e fui conferir se o que estava ouvindo era realmente real. E adivinha só: novamente, dentro da privada, se debatia o rato.



   PAAAIIII!!!!
   E lá veio meu pai correndo do quarto para se deparar com a mesma situação. Só que aí, o que ninguém esperava que acontecesse aconteceu: o rato pulou sabe-se lá como e foi parar no chão. Meu pai quieto, apreensivo.

   - Que foi pai?
   - Ele tá no chão!
   - Como?
   - Sei lá!
   - Quer o Mortein?
   - Não vai adiantar de nada!
   - E o que você vai fazer?
   - Merda: ele se mexeu!
   - Quer o Mortein?
   - Tá, me dá aí!

   O rato começou a correr alucinadamente dando voltas ao redor do banheiro enquanto o meu pai borrifava veneno nele. O rato ficou meio desnorteado e com medo e se escondeu atrás da privada, dentro do pote que servia de suporte ao esfregão da privada. Meu pai borrifava alternadamente o veneno no rato.

   - E aí?
   - O que?
   - Ele morreu?
   - Claro que não, né? Mas tá acuado.
   - E agora? Quer que eu abra a porta de casa?
   - Cê tá louca? Ele não pode sair daqui ou vai se meter em casa e aí já era.
   - E agora? Vai fazer o que?




   Meu pai fiou quieto e aceitou seu destino de guerreiro trancando-se no banheiro com o rato junto. Eu sentei em um degrau da escada, apoiando o Mortein, que meu pai acabara de me entregar, sobre a perna. Mas é claro que eu ainda estava em posição de ataque com o veneno. Meu pai não estava munido de arma alguma: seria um combate visceral, corpo a corpo, tudo ou nada. Meu pai se mexeu, o rato correu. Meu pai o golpeou,o rato gritou.

   - Pai?
   - Humm.
   - Tá tudo bem?
   - Tá.
   - Quer o Mortein?
   - Não.

   Mais um hiato. O rato gritou e meu pai o golpeou mais algumas vezes. Silêncio.

   - Pai? Tá tudo bem?

   E ele abre a porta: o esfregão da privada numa das mãos, o rato morto no box.

   - Cê acredita que ele tava erguendo aquela gradezinha do box?
   - Cê tá de brincadeira!
   - Pois é. Aí eu tive que acertar ele.
   - Pai, ele abriu o olho.

   E golpeou mais outra vez o corpo imóvel, que abriu a boca como reflexo e deixou que a língua tombasse pra fora.

   - Será que morreu?
   - Não sei, tô sem óculos! Aliás, pega lá meu óculos para eu analisar a situação.
   - O preto?
   - É.

   Ele colocou os óculos e analisou tudo silenciosamente.



   - É que o olho ainda tá aberto. Rato pisca?
   - Como assim? - e riu.
   - Ué, pai... Não sei como funciona um rato! Não sei nem se tá morto...

   Ficamos olhando o corpo imóvel no box e analisando-o de todos os pontos possíveis.

   - Humm... Mas pensando bem, se pah que ele tá morto mesmo, né pai? Se for analisar bem, tem sangue saindo ali da orelha dele, acho que estourou o tímpano... E a julgar pelo tamanho do corpo, o sangue que tá aí já deve ser o suficiente pra ele ter morrido. E o corpo é até que bem frágil, né?
   - É provável que o cérebro tenha estourado.
   - É... Vamos tirar ele daí? Porque não dá pra ficar encarando o corpo a noite toda.
   - Mas como?
   - Ah, acho que tem que enrolar num jornal, né?
   - Então pega lá dos seus.
   - Tá... Vou pegar uma sacolinha também.

   Esticamos o jornal no chão e ficamos planejando o processo.

   - Filha, pega minha luva verde lá embaixo.
   - Tá.

   Nesse meio tempo minha mãe surge descendo as escadas.

   - Mãe? Cê quer usar o banheiro?
   - Por quê?
   - É que é melhor cê usar o meu aí em cima. Este daqui tá interditado.
   - Ah! Por isso? Cê acha que eu não sei o que tá acontecendo aí depois desse drama todo?
   - Ah... Sei lá - risos.
   - Mas o que você tá fazendo de luva, amor? Não meu... pega ele como se fosse cocô de cachorro ó...

   E em menos de 5 minutos ela limpou o banheiro e removeu o corpo da cena do crime. Depois de ter finalizado esse "simples" trabalho, ela ficou parada uns instantes na cozinha, olhando para o relógio, meio pensativa.

   - Putz, olha a hora... Nem compensa ir dormir de novo! Vamos tomar café da manhã?


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