Livrando e Revistando + Fita de Cinema - Ensaio Sobre a Cegueira

   Se tem um filme que me marcou durante a pré-adolescência, foi "Ensaio Sobre A Cegueira". Não vou lembrar ao certo quando assisti, em quais condições assisti (apesar de suspeitar ter baixado pela internet e assistido na solidão do meu computador), mas sei que aquela ideia de apocalipse não climático (o que na época era uma febre no mundo cinematográfico mainstream) me manteve criando diversos questionamentos e reflexões a cerca do que o ser humano é capaz de fazer em situações extremas (e que não apresentavam o que era moralmente correto, como os demais filmes, mais mainstreams, que sempre apresentavam personagens muito educados e equilibrados que não se deixavam levar pelo "instinto selvagem" de sobrevivência mesmo nas piores situações). E as hipóteses que eu ia tecendo a respeito me deixavam realmente assustada por dois motivos: medo do que a sombra de cada um esconde, medo daquilo que eu mesma sou/seria capaz de ser ou fazer e que somente viriam à tona em momentos extremos como os abordados no filme.


   Na época eu era dessas pessoas que tinha muuuita preguiça de ler qualquer livro que fosse, ainda mais quando já havia assistido ao filme inspirado no livro: simplesmente não via qualquer necessidade de "reviver" a história.


   Mas, nos últimos tempos, no processo amadurecimento da minha sede cultural e consequente criação e manutenção do hábito da leitura, passei a achar mais do que importante ler o livro cuja história tenha sido representada pelos filmes, em específico aqueles que possuem grande relevância no mundo acadêmico e/ou que tenham sido premiados. E a história de "Ensaio Sobre A Cegueira" foi uma destas que além de nunca ter abandonado meu pensamento, sempre se mantém absolutamente atual (para o bem e para o mal, como diria Paulão). E fui "comendo pelas bordas outros livros do Saramago, como "Caim" (extremamente bom) e "O Conto Da Ilha Desconhecida" (supreendente) até chegar o dia em que meu caminho/destino cruzou com esta obra-prima sem planejamento prévio: no início do ano, conheci o Márcio Martinez pela Dublab e pela Patuá, e ele estava vendendo diversos discos e livros que haviam ficado aqui em Sampa (já que ele não mora mais no Brasil há algum tempo). Na listinha de livros, adivinhem só quem estava....: esta maravilhosidade do Saramago! Óbvio que não tive dúvidas e já logo garanti o livro!! E ao tê-lo em mãos ainda tenho a grata surpresa de ter uma edição com uma capa especial por conta do lançamento do filme: não tinha como ser mais perfeito! Claro que não consegui me segurar e pulei a ordem do meu planejamento de leituras e o devorei!!


   Confesso que, de certa forma, foi maravilhoso que eu só tenha, enfim, lido agora o livro: a experiência de me permitir ler em profundidade uma história tão densa e bem estruturada quanto esta realmente que merece certo desprendimento moral para permitir-se sentir a realidade absurda desenvolvida ao longo das 310 páginas. E como julgar um livro que propõe, indiretamente, a auto-crítica simultânea a leitura? E ao contrário do que supunha, ao terminá-lo percebi que ambos os produtos (livro e filme) são extremamente necessários de serem consumidos, visto que cada um possui um objetivo específico e que, no final, eles se complementam.


   Ao longo dos dias que passo pensando e escrevendo aos poucos este texto, estou num momento no qual venho consumindo cada vez mais a mídia física: comprei uma infinidade de livros e novos discos e comecei a refletir neste formato de divulgação de pensamentos e, consequentemente, de certa forma, de sentimento também. Estamos em 2019 e ainda existem músicas feitas neste presente século que você não encontrará em lugar algum da internet: ela está disponível apenas em disco! E o que dizer de conceitos e sua presença em livros que nem fazem parte de uma bibliografia virtual? Desta forma, fazendo uma divagação ainda mais distante com aquilo que não está nem impresso e nem gravado: o que dizer de cantos milenares que só podem ser ouvidos ao vivo? De conhecimentos que pouquíssimas pessoas detém e que ninguém tem nem desconfiança de que esse conhecimento exista e muito menos de quem o teria?


   Pode parecer que, no intervalo entre a escrita e a reflexão do texto, eu tenha me perdido ao abordar estes pensamentos, apesar de tudo, amplamente comentados ao longo das últimas décadas com a preocupação do advento da tecnologia (mas que não deixa de ser uma preocupação constante na história da humanidade, visto que uma das primeiras tecnologias que suscitaram este receio foi a escrita e cujo principal defensor da não utilização desta como apoio à memória foi Sócrates - uma história descrita, inclusive, em Fedro, de Platão, e cujo livro eu pincelei superficialmente neste post aqui - e que volta a ser retomado e um livro que venho lendo nas últimas semanas sobre o cérebro na era digital), mas se traçarmos um paralelo entre a falta de interesse e/ou respeito pela construção particular de conhecimento de cada pessoa, se não protegermos nossa memória física, se um apocalipse/surto de qualquer proporção for motivo para nos tornarmos selvagens sem consciência, após a tormenta não haverá futuro sustentável que possa ser construído. Acredito que, no final, um pouco da reflexão de "Ensaio Sobre A Cegueira" tange este assunto: uma auto-reflexão (neste caso leia-se auto como simultaneamente referindo-se a pessoa e a comunidade/sociedade a qual a mesma pertence) que possibilite que evitemos maiores danos às nossas experiências, convivências, conhecimentos e consciências. Porque, no final das contas, preservar e conhecer o passado, construir estilos de vida e projetos sustentáveis e trilhar um futuro equilibrado e que se mantenha neste ciclo virtuoso exige um esforço intenso e contínuo de todos nós, mas que será o melhor investimento, caso não tenhamos interesse em abrir mão de toda evolução conquistada até agora.


   Outro paralelo importantíssimo que o livro faz é com a realidade dos cegos ou pessoas que possuam alguma característica física e/ou psicológica que necessite de cuidados especiais na forma como se relaciona com e no mundo: como são destratados, ignorados e isolados, de certa forma. A grosso modo, o que não é compreendido pela sociedade, o que não é "visto" (por fazer parte de uma minoria, ou ser a exceção da regra biológica e/ou social), é tratado com a agressividade de um possível contágio de uma doença grave: uma parte se dedica a entender e buscar soluções para melhoria da qualidade de vida (seja da minoria, seja da maioria) ou mesmo sua cura (ou extinção), outra parte das pessoas ignora ou mesmo foge do "conflito" de encarar o objeto incompreendido (de forma a perpetuar a  ignorância sobre o mesmo) e uma outra parte ajuda os "infectados", próximos a si, por esta característica.



   Por fim, existe ainda um outro ângulo que é abordado no livro: a forma como nos organizamos (ou a falta desta organização) para vivermos em equidade. Equidade de classe, gênero, e condições como humanos, porque, afinal, somos animais sociais. E a equidade, utopicamente, seria a única forma de alcançar uma forma que realmente valha a pena ser vivida e defendida pelas pessoas que compartilham deste mesmo espaço físico e social.




   E a parte das divagações, acho importante finalizar falando sobre o filme em si: a forma como foi dirigido por Fernando Meirelles materializando, de uma forma diferente da contida no livro, de uma forma muito positiva do ponto de vista da experiência de (vi)ver a história. Enquanto o livro centraliza-se na experiência da mulher do médico, o filme tenta fazer com que experimentemos um misto da cegueira, pela saturação do branco e pela sensação de sermos guiados pela mulher do médico, com a percepção visual do que vem acontecendo dentro da nova e absurda realidade (que seria possível, dentro a ótica de Saramago, apenas pela visão da mulher do médico). Neste misto, alguns sons são ressaltados de forma a termos não apenas a percepção da necessidade de absorvermos todos os detalhes sonoros ao nosso redor para nos guiarmos no ambiente e no tempo e o fato de o branco das coisas e a própria iluminação todas serem e estarem saturadas nos fazendo duvidar constantemente, junto a mulher do médico, de quanto tempo durará o privilégio (ou o sacrilégio) de ver. O branco representado tem uma relação direta, portanto, não com a higiene das coisas, mas com a habilidade de verdadeiramente ver. Uma curiosidade maravilhosa: o filme foi gravado aqui em Sampa!! E isso é interessantíssimo por nos possibilitar traçar um paralelo de como as coisas estão, politicamente falando, e a forma como elas são apresentadas cenograficamente no filme.


   Confira, agora, o trailer e o making of do filme:






Curtiu? Acompanhe as novidades do Anônima Mais Conhecida pelo Facebook! 😉

Comentários

Postagens mais visitadas